Quando pequena, Renata Meirelles tinha medo de crescer. Não era o desconhecido ou a responsabilidade inerente aos mais velhos que a angustiavam, mas o desejo de nunca mais parar de brincar. O interesse por crianças, brinquedos e brincadeiras fez com que Renata se especializasse como pesquisadora desses assuntos. O mais novo fruto de sua investigação é o documentário “Território do Brincar”, que percorreu o Brasil para mostrar como brincam as crianças. No entanto, mais do que registrar cenas de uma velha infância ainda viva, a educadora e pesquisadora paulistana revela que o verdadeiro objetivo do filme é fazer com que as pessoas acreditem no poder da brincadeira.
“O que tenho tentado dizer para as pessoas é que elas precisam acreditar nas crianças e no potencial do ‘ser criança’. Nós não precisamos de tantos estímulos de fora pra dentro. Crianças sabem do que precisam, têm buscas e desejos próprios e é isso que precisa ser exercitado para que elas saibam quem são. Esse processo exige ócio, tempo livre e disponibilidade”, explica Renata, que convida os pais a oferecer espaço e silêncio aos filhos. “Estamos sufocando nossas crianças com supervisão demais, brinquedos demais, tecnologia demais”, diz
O documentário vem à tona no momento em que a tendência “slow”, de desaceleração da vida, cresce em adeptos nas famílias mineiras. A filosofia do “slow parenting”, popularizada pelo livro “Sob Pressão”, do jornalista Carl Honoré, prega que os pais saibam saborear a vida com os filhos em vez de encarar a infância como uma corrida contra o tempo. “Slow” não significa fazer tudo a passos lentos, mas na velocidade certa e com qualidade. A proposta é de que os filhos tenham tempo para se tornar quem são e não o que os pais querem que eles sejam, ou, como resume Renata, “precisamos deixar que elas se apropriem da própria infância. A gente não tem que pensar no ‘vir a ser’, eles já são. Precisamos valorizar o presente”. É assim que a professora Glenda Goulart leva a criação de Davi, 3: sem pressa. “Fui muito condenada porque só quis colocar o Davi na escola agora. Acho que foi até cedo demais. Tudo tem seu tempo. A hora de estudar vai chegar, então pra quê correr? Preocupar demais com isso agora tira dele o tempo precioso que é de brincar”, diz. “A ordem de agora é brincar. Logo mais ele vai poder comunicar comigo o que deseja estudar ou aprender. O ideal é que sejamos sempre guiados pela voz e pelos interesses dele”.
A arquiteta Carolina Morais, mãe de Carlos Eduardo, 3, e Luisa, 1, também não faz questão de que os filhos sejam alfabetizados às pressas. “Tenho visto que as crianças estão adultas cedo demais, cheias de horários e obrigações. É nítido o estresse que elas sentem. Tenho noção de que o mundo exige que as pessoas sejam cada dia mais capacitadas, mas pretendo deixar meus filhos até os 7 anos livres para serem crianças”.
Daniela Leite, por outro lado, entende que é desde cedo que se aprende. Alberto, 1, já faz natação três vezes por semana e deve entrar numa aulinha de música em breve. “Aqui em casa nós prezamos muito por mostrar as necessidades e os deveres que ele vai ter pela frente desde novinho. Claro que há momentos de diversão, mas também de amadurecer pra vida. Acho que não é só brincar”, conta.
Balanço
As atividades extracurriculares têm sua importância. Mas os pais precisam moderar na escolha delas, ou a boa intenção pode sair pela culatra. Com agendas cheias, muitas responsabilidades e expectativas, o resultado é uma criança ansiosa e mais propensa ao estresse, como explica o psicólogo e especialista em desenvolvimento infantil Alysson Massote.
“As atividades em si não são maléficas, exceto quando em excesso. Tudo depende de como elas são encaradas. Se houver muita cobrança, a criança não se diverte e vai encarar aquilo como obrigação – isso vai gerar estresse, ansiedade e depressão. As coisas precisam ganhar uma perspectiva lúdica, em vez de competitiva. O grande desafio é achar o equilíbrio entre a demanda do desenvolvimento humano, que passa muito pelo simples ato de brincar, e as exigências do mundo moderno”, afirma.
Saiba mais
Os sete mandamentos do Slow Parenting, segundo Carl Honoré
1. Diga não à correria
Crianças de até 5 anos não precisam de atividades todos os dias – deixe-as livre para brincar
2. Deixe o currículo para mais tarde
Atividades extraescolares são ótimas quando ajudam a exercitar mente e corpo, mas atrapalham quando só visam melhorar o currículo da criança
3. Ouça os mais novos
A opinião da criança é extremamente importante na hora de considerar uma atividade
4. Menos é mais
Reserve sempre algum tempo para o tédio. Cabeça vazia é um dos ingredientes para uma infância criativa
5. Aproveite você também
Fazer nada também é bom para você. Conversem, joguem bola, caminhem sem ter para onde ir.
6. Coisa séria
Brincar é condição do desenvolvimento da criança. A falta deste espaço, somada à alta carga de cobrança e expectativa, geram ansiedade e depressão.
7. Amizades
Insira as crianças em círculos sociais, permita e estimule que elas tenham amigos sem interferir demais. Com informações do livro
Arte de ensinar adultos
Para Alysson Massote, psicólogo e especialista em desenvolvimento infantil, a geração que agora está tendo filhos é formada pelos netos da “geração hippie” – o que explica, segundo ele, parte do fenômeno “slow”. “Estamos agora numa etapa de descenso do movimento pendular. A correria e a agitação das grandes cidades chegaram ao limite e têm demandado que as pessoas queiram retomar um estilo de vida menos acelerado, como no tempo de seus avós. Graças a esse pessoal, a vida contemporânea tem acontecido muito ao ar livre”, observa.
Prova disso é o crescente movimento de pais e filhos nas praças e nos parques de Belo Horizonte. Miriam Barreto que o diga. A publicitária é uma das organizadoras do blog “Na Pracinha”, que divulga e promove encontros periódicos em espaços públicos da cidade, e testemunha de perto a crescente ocupação da cidade pelas crianças.
“A gente tem feito o esforço de manter os encontros acontecendo porque o retorno é positivo e os resultados, benéficos. As mães sempre comentam sobre como os eventos têm influenciado nas rotinas em casa. Muitas delas falavam que não sabiam o que fazer com o filho no tempo livre – sempre ficavam vendo TV com eles ou iam para o shopping. Agora, o pessoal está descobrindo as atividades ao ar livre e os preceitos do ‘slow parenting’”, comenta a mãe de Sara, 4, e Raul, 1 mês.
Segundo ela, a quantidade de participantes cresce a cada encontro e já existe um movimento de eventos paralelos, criados por pais que testaram e aprovaram a experiência de brincar ao ar livre e sem programação. “É assim que se constrói uma teia de coisas boas”, diz.
Brinque junto
Miriam toca numa questão importante ao lembrar que, além de crianças mais saudáveis, ativas e alegres, o lazer também proporciona aprendizados aos pais: brincar é uma das melhores maneiras de estreitar laços e conhecer os filhos.
“Vendo a Sara brincar de cuidar das bonecas, fingindo de escolinha, visitando e sendo gentil com as amigas imaginárias, sei que está tudo bem com ela”, conta a mãe.
A publicitária Ana Beatriz Castro, mãe de Caetano, 4, observou que, brincando, o filho sempre cantava e batucava pela casa. Por causa do interesse do menino, decidiu colocá-lo na aula de música, uma vez por semana – para isso, precisou abdicar da natação para não sobrecarregar o menino.
“Por mais que o Caetano seja novinho, tentamos ouvir a opção dele. Vejo que ele está gostando muito do curso de música – chega de lá e canta até. Mas se não der certo, se começar a demandar mais energia e empenho do que dar prazer, passa a não valer a pena. O tempo dele é de brincar. Quando dou a ele a oportunidade de brincar, dou também a chance de ele descobrir e interpretar o mundo à sua maneira, exercitar a criatividade e construir sua personalidade. Aprendo muito sobre o Caetano quando levamos as coisas na brincadeira”, avalia Ana Beatriz.
“Acho que quanto mais ele brincar, experimentar, embarcar em viagens imaginárias e aproveitar as coisas dele, com menos estímulos e menos interferência, mais ele vai se tornar seguro de si, entender sobre o próprio tempo e as próprias necessidades”, conclui.
Controle o uso dos eletrônicos
No Natal de 2014, os tablets lideraram, pelo segundo ano consecutivo, as listas de presentes mais pedidos pelas crianças brasileiras. O uso de equipamentos eletrônicos é cada dia mais comum entre os pequenos – até mesmo entre os não alfabetizados –, mas a terapeuta ocupacional Márcia Bastos Rezende pede atenção.
Para ela, a criança precisa, acima de tudo, de espaço e tempo para experimentar o próprio corpo. “Se a criança não brinca na rua ou nos pátios, ela não desenvolve o social, o cognitivo e as habilidades motoras como as outras. Os jogos eletrônicos, que têm informação apenas cognitiva e visual, devem ser controlados. O excesso deles pode comprometer a escrita, a força nos braços, bem como favorecer a obesidade, a cardiopatia, o colesterol e a diabetes”, afirma.
Jogos como o Nintendo Wii, que respondem ao movimento, podem ser um bom paliativo contra o sedentarismo, mas não devem substituir nenhum outro tipo de atividade física, alerta a terapeuta.
Para ler sobre o “Slow Parenting”
Matéria publicada no site O Tempo