No cenário esportivo atual, o futebol feminino tem conquistado espaço e reconhecimento, mas ainda há uma jornada para alcançar a igualdade plena.
Para entender melhor os avanços e as dificuldades dessa modalidade, conversamos com Nina Abreu, uma figura de destaque no mundo do futebol feminino, que compartilha suas experiências e perspectivas sobre o presente e o futuro do esporte.
Com um histórico de desafios que vão desde a falta de investimento até a luta por visibilidade, as atletas e profissionais da área continuam batalhando por mudança.
Esta entrevista traz à tona as conquistas recentes e as metas que ainda precisam ser alcançadas para que o futebol feminino tenha o respeito e a relevância que merece.
Esta é a primeira matéria de uma série que explorará diversos aspectos do futebol feminino, destacando histórias inspiradoras, desafios persistentes e os passos importantes rumo à equidade no esporte.
Nina, antes de chegar aqui na Sedese, você passou por uma trajetória marcante, como o período na Assessoria de Comunicação da Federação Mineira de Futebol (FMF), no Clube Atlético Mineiro, como coordenadora da categoria de futebol feminino, e outras etapas importantes da sua carreira. Você pode falar um pouco dessas experiências?
Minha trajetória começou na Federação Mineira de Futebol (FMF), na assessoria de comunicação. Costumo brincar que foi no século passado; fui uma das primeiras gerações de mulheres a iniciar uma carreira profissional em um ambiente masculino.
Após a FMF, passei três anos no Atlético, onde profissionalizamos uma equipe de futebol em resposta à obrigação que a FIFA impõe à CBF e, sucessivamente, à CBF impõe aos clubes, de manter um time feminino.
Havia duas possibilidades: ter um projeto social ou um time profissional. O Atlético optou, em um primeiro momento, por apadrinhar o ProInter, um time de futebol amador feminino. Nós “profissionalizamos” o departamento e conseguimos o acesso à divisão de elite do futebol brasileiro feminino.
Ao longo dos três anos no Atlético, fui reformulando o time até transformá-lo em um time profissional, e conseguimos o acesso do Atlético Mineiro à Série A1 do Campeonato Brasileiro, a principal divisão do futebol.
Nós contratamos uma fotógrafa profissional para captação de imagens das atletas para disponibilização na mídia impressa, e aproveitamos o surgimento das redes sociais para divulgar o futebol feminino. Lembro que promovia uma espécie de álbum de figurinhas digital das jogadoras de futebol feminino do futebol amador de Belo Horizonte, principalmente porque o Campeonato Mineiro ficou um tempo sem ser realizado, embora sempre tenha sido meio metropolitano.
Criamos álbuns digitais para apresentar essas atletas à sociedade e à imprensa, utilizando as redes sociais para democratizar e divulgar mais o futebol feminino.
Quais são os principais desafios que o futebol feminino ainda enfrenta no Brasil?
Apesar de a CBF e os clubes estarem fomentando e promovendo campeonatos, como o Campeonato Brasileiro, e os estados e as federações também estarem organizando os campeonatos estaduais profissionais, ainda estamos dando os primeiros passos. A nossa Federação Mineira, por exemplo, já promoveu este ano o Campeonato Mineiro Sub-17. São apenas quatro equipes, mas já é um começo.
A CBF tem incentivado as federações a promoverem esses campeonatos. Acredito que ainda precisamos da sociedade trabalhando para a oferta da prática do futebol feminino.
A questão da proibição durante 40 anos, na década de 70, deixou um déficit muito grande. Não adianta apenas trabalharmos com o alto rendimento; precisamos também focar no futebol como um esporte de socialização e na prática social, além do esporte escolar.
Acho que é necessário normalizar mais essa prática para atuarmos em vários eixos, não apenas dentro de campo.
A mulher dentro das quatro linhas enfrenta um déficit. A mulher na arquibancada e na redação esportiva também enfrenta desafios. A proibição durante 40 anos atrasou toda essa cadeia produtiva do futebol em relação às mulheres.
O futebol, assim como outros esportes vistos como tipicamente masculinos (o boxe feminino só entrou nas Olimpíadas em 2012, por exemplo), foi proibido dos anos 40 até a década de 80. Você acredita que ainda existem consequências desse veto?
Sem dúvida, existe um déficit social imenso decorrente da época da proibição. O futsal se desenvolveu mais rapidamente justamente porque as mulheres se dividiam em grupos. Algumas jogavam em ginásios, enquanto outras vigiavam para garantir que não passasse ninguém que pudesse denunciar a prática à polícia.
Temos muitos relatos desse tipo na Baixada Santista, na época da proibição. Há uma exposição no Museu do Futebol chamada “Contra-Ataque”, que traz recortes de jornais da época mencionando essa proibição e o escândalo que representava o corpo das mulheres exposto em um jogo de futebol, um esporte que era considerado estritamente masculino e, por isso, tão violento.
Portanto, sim, existe um legado de prejuízos muito grande para toda uma cadeia — não só para as jogadoras, mas também para torcedoras, médicas, treinadoras e preparadoras físicas.
Enfim, há uma rede de profissionais que foi prejudicada em decorrência dessa perseguição. Não se tratava apenas de uma proibição.
Ainda existem diferenças significativas, em comparação ao futebol masculino, como na infraestrutura disponível?
Sim, ainda existem diferenças significativas em comparação ao futebol masculino, em relação a tudo: infraestrutura, salários, tratamentos e até mesmo interesse social.
Já vimos casos aqui em Belo Horizonte em que o Cruzeiro conseguiu colocar o futebol feminino como preliminar do masculino. Enquanto mil pessoas assistiam ao futebol feminino dentro do estádio, trinta mil estavam na Esplanada tomando cerveja, esperando o jogo masculino começar.
Acredito que esse é um dos maiores indicativos de que precisamos repensar o futebol, pois as diferenças são, de fato, significativas. O futebol feminino está muito atrasado em relação ao masculino no Brasil.
Precisamos aproveitar a experiência dos homens, assim como podemos trabalhar para construir um futebol assertivo e sustentável.
Essa diferença significativa se deve, em grande parte, à histórica proibição do futebol feminino, e é essencial que pensemos em um novo modelo para o esporte.
Como você avalia a cobertura de mídia em relação ao futebol feminino atualmente?
A cobertura do futebol feminino ainda é incipiente. Apesar da transmissão de alguns jogos pela mídia convencional, não existe, ainda, um interesse comercial tão robusto no futebol feminino quanto no masculino. Isso é perceptível na cobertura esportiva do dia a dia, seja em programas diários de rádio ou de televisão.
Observamos que há uma fatia muito pequena dedicada ao futebol feminino. Portanto, sim, existe uma diferença significativa em relação à mídia e às transmissões, apesar de estarem melhorando e já terem avançado. No entanto, é necessário que avancem ainda mais. Isso está relacionado ao mercado, pois a mídia existe principalmente quando pode vender. Assim, acredito que é uma questão de interesse de mercado e, automaticamente, do interesse da sociedade.
O que pode ser feito, ou melhor, quais estratégias podem ser adotadas pelos municípios para aumentar o alcance, visibilidade e interesse pelo futebol feminino?
Acredito que podemos desenvolver algumas possibilidades ou propor formas de fomento para quem já pratica. As leis de incentivo ao esporte, tanto do governo federal quanto do governo estadual, são fontes de fomento que devem ser mais exploradas, tanto pelas prefeituras municipais quanto pelos clubes e demais organizações que estão nos municípios. É importante levar exemplos de clubes profissionais daqui e de outras partes do Brasil que estão dando certo, para que esses municípios entendam como desenvolver o futebol feminino. Capacitação, fomento e calendários de competições são fundamentais para o desenvolvimento da modalidade.
Além disso, devemos começar na primeira infância, para que as meninas tenham contato com a bola cada vez mais cedo, assim como os meninos. Isso ajudará a evitar déficits cognitivos e permitirá que possamos formar atletas no Brasil, tanto no interior quanto em campos de várzea, sem que elas enfrentem preconceitos das famílias e da sociedade. É fundamental que essas iniciativas sejam apoiadas pelo estado de alguma forma, e as subsecretarias da Sedese estão trabalhando nas possibilidades, principalmente de oferta, fomento e capacitação do setor.
Como você vê o futebol feminino hoje, em vista do cenário vivenciado em 2019, da obrigatoriedade de times femininos para que os masculinos pudessem participar das competições?
Eu vejo o futebol feminino avançando, mas ainda não acredito que tenhamos alcançado excelência no alto rendimento. As atletas do nosso alto rendimento ainda apresentam um grande déficit de preparação física. Isso também se deve à falta de uma base consistente; cada uma delas construiu sua formação de um jeito, de maneira isolada. Precisamos tornar essa formação mais homogênea.
Ainda existem muitas diferenças no aspecto físico do futebol feminino no Brasil. Embora tenhamos avançado, precisamos progredir cada vez mais para nivelar o alto rendimento e formar atletas com consciência, especialmente em relação às diferenças fisiológicas entre os gêneros. É fundamental trabalhar essa questão social da convivência entre meninos e meninas para irmos além das quatro linhas. Precisamos produzir não apenas um novo futebol, mas também criar um ambiente que seja menos machista e menos preconceituoso.
A compulsão imposta pela FIFA, de certa forma, ajudou a alavancar o futebol feminino. Vejo isso de maneira positiva, mas agora todos nós, como sociedade e como estado, precisamos fazer a nossa parte para dialogar com as torcidas e com o grande público do futebol. É importante convencer essa massa do futebol masculino de que, mesmo que não gostem do futebol feminino, devem respeitá-lo. Acredito que essa imposição da FIFA é positiva, pois força os clubes a apresentarem o futebol feminino às suas nações. A partir dessa apresentação, podemos trabalhar outros eixos, para que, em um futuro próximo, consigamos ter uma maior aceitação e apreciação do futebol feminino.
Durante os Jogos Olímpicos de Paris 2024, as mulheres desempenharam um papel marcante. Das 20 medalhas conquistadas pelo país, 12 foram alcançadas por mulheres, inclusive nas modalidades vetadas há 40 anos. O que essas conquistas representam para as atletas de futebol feminino no Brasil?
Os Jogos Olímpicos de 2024 foram extremamente significativos e representativos para o Brasil. Eles traduzem exatamente o que estamos falando: existe um avanço, mas ainda precisamos progredir muito. Não conquistamos a medalha de ouro, e se tivéssemos conseguido, poderíamos achar que tudo estava pronto e certo, mas ainda não estamos preparados.
Há uma necessidade urgente de formação de atletas no futebol feminino e de construção de uma nova sociedade, menos misógina, no ambiente do futebol. Precisamos garantir que as mulheres possam jogar, que possam ir aos campos de futebol e que possam trabalhar nas redações esportivas e nas comissões técnicas, não apenas no futebol feminino.
Hoje, já vemos profissionais qualificadas compondo as comissões técnicas do futebol feminino, como fisioterapeutas, psicólogas e nutricionistas. No entanto, ainda existem relatos de que esse é um ambiente marcado por preconceitos. Portanto, precisamos transformar nossa sociedade para conquistar uma medalha de ouro olímpica com excelência.
O que você considera essencial na formação de novas jogadoras e profissionais no futebol feminino?
A capacitação é essencial tanto para as atletas quanto para as profissionais que desejam atuar nas diversas áreas do futebol feminino. Para as atletas, isso inclui preparo físico e motor: quanto mais cedo elas começarem e mais bem preparadas estiverem, maior será a chance de sucesso em suas trajetórias.
É fundamental investir na formação das atletas e, ao mesmo tempo, na capacitação dos profissionais que atuam no futebol feminino. Enquanto os homens já possuem mais avanços e acesso ao conhecimento, precisamos nos preparar continuamente e levar essa capacitação para o interior do estado.
Atualmente, em Belo Horizonte, temos três clubes profissionais que desenvolvem o futebol feminino, mas é crucial replicar esse modelo no interior e nas escolas. Assim, fomentamos o interesse das meninas e ajudamos a desmistificar a modalidade, promovendo sua aceitação pela sociedade e pelas famílias.
Além disso, é indispensável capacitar figuras importantes no ambiente do futebol, como massagistas e roupeiras. Também precisamos incentivar a participação de mulheres em funções como repórteres de campo, narradoras, comentaristas e nutricionistas, fortalecendo sua presença em toda a cadeia do futebol.
Existem iniciativas ou programas que você acredita que estão fazendo a diferença no cenário? Qual é o papel da política pública?
Sim, existem iniciativas importantes. Em Minas Gerais, realizamos um diagnóstico com os municípios para compreender como as secretarias municipais percebem e apoiam o futebol feminino. O levantamento também buscou identificar o interesse dos municípios pela modalidade e sua prática por mulheres em escolas ou associações locais.
Os municípios que responderam ao questionário receberam pontuação no ICMS Esportivo, e agora estamos buscando alternativas para dar mais visibilidade àqueles que apoiam o futebol feminino.
Entre as iniciativas para 2025, planejamos incluir um kit de futebol feminino no portfólio de emendas parlamentares da Subesp. Essa e outras propostas foram apresentadas à FIFA. Durante a visita técnica a Belo Horizonte para a Copa do Mundo de 2027, a FIFA avaliou positivamente o desenvolvimento do futebol feminino em Minas Gerais, colocando o estado na concorrência para sediar a competição.
A ONU Mulheres considera o futebol uma ferramenta importante para a promoção da igualdade de gênero e para combater a violência contra a mulher. Você concorda?
Concordo plenamente. Por isso, promovemos a prática do futebol para meninas e meninos juntos desde a primeira infância, criando um ambiente de respeito mútuo desde cedo.
Quando oferecemos o futebol apenas para os meninos e direcionamos as meninas para outras atividades, como o vôlei, criamos um ambiente de segregação. O ideal é que, desde pequenos, meninos e meninas aprendam a compartilhar o campo, respeitando as diferenças físicas e trabalhando juntos o desenvolvimento cognitivo e social.
Essa convivência ajuda a criar respeito dentro e fora do campo, impactando positivamente as arquibancadas, as salas de aula e outros contextos esportivos.
Em 2027, o Brasil sediará a Copa Feminina de Futebol. Na sua opinião, como esse evento pode contribuir para transformar o cenário atual?
Sediar a Copa do Mundo de Futebol Feminino será um marco significativo. No entanto, é importante que possamos usufruir do legado do evento antes de sua realização, utilizando-o como uma oportunidade de transformação social.
Precisamos apresentar a modalidade de forma ampla, levando-a para além dos grandes centros urbanos e desenvolvendo políticas públicas que deem visibilidade aos municípios que fomentam o futebol feminino.
O ideal é envolver o maior número de mulheres, tanto no trabalho voltado para a Copa quanto na divulgação do evento, garantindo um impacto duradouro no cenário esportivo nacional.
Como podemos prevenir a violência contra atletas no futebol feminino?
A prevenção passa, primeiramente, pela disseminação de informação. Este ano, realizamos programas de capacitação em estádios de futebol de Belo Horizonte, como o Mineirão, Independência e Arena MRV. Esses espaços conheceram o protocolo de enfrentamento à violência da Sedese, e servidores e funcionários foram capacitados.
Promovemos rodas de conversa tanto para as categorias de base masculinas quanto para as profissionais femininas, abordando os diferentes tipos de violência. Muitas pessoas ainda não reconhecem situações de violência devido à falta de informação, o que as deixa vulneráveis.
Nosso estado recebe atletas de várias partes do país, e é nossa responsabilidade formar cidadãos conscientes, que possam replicar esse conhecimento em suas comunidades, ajudando a combater a violência de maneira ampla.
Que mensagem você gostaria de deixar para as jovens atletas que sonham em seguir carreira no futebol?
A mensagem é: não desistam. O caminho não é fácil, pois, além de buscar o profissionalismo, enfrentamos preconceitos enraizados. Mas é exatamente por isso que precisamos de cada pessoa interessada na modalidade.
Estamos semeando um terreno árido, mas é um processo sem volta, e colheremos os frutos no futuro. Não queremos formar apenas jogadoras; queremos torcedoras, repórteres, técnicas, massagistas, comentaristas e tantas outras profissionais para ocupar toda a cadeia do futebol feminino.
Que mensagem você gostaria de deixar para os gestores municipais de esportes e para os profissionais do terceiro setor?
Para os gestores e profissionais do terceiro setor, o recado é: acreditem e invistam na modalidade.
Confiem na formação de atletas e deem o voto de confiança necessário para que possamos criar um ciclo virtuoso. Estamos comprometidos com um futebol mais sustentável e inclusivo.
Se investirmos na formação desde a primeira infância, poderemos, em breve, oferecer ainda mais talentos ao futebol brasileiro e mundial. Isso só será possível com o apoio dos gestores municipais, professores de educação física, entidades do terceiro setor e de toda a sociedade.